Vidas Convergentes, Eduardo Moreira

«Com poucas palavras antecederemos esta pe­quena obra, pois também é quase certo que em geral passará por elas o leitor, sem grande reparo, como é prática muito comum com os prefácios.

Deixaremos, por isso, para um capítulo inte­grado no texto a evocação dos “Pioneiros esque­cidos”, que aliás bem merecem ser evocados.

Necessário é, contudo, que exponhamos aos espíritos sistemáticos o nosso plano, amadurecido em lições dadas durante um semestre numa ca­deira de poiménica do S. T. P. de Carcavelos, após a série que constituiu um primeiro semestre e um primeiro tomo. Acresce dizer, contudo, que os outros capítulos, encimados por um nome, não são biografias exclusivas, como pareceria à pri­meira vista, mas quadrinhos históricos em que tivemos o propósito de fazer avultar um guia cristão, de entre os diferentes pioneiros, orienta­dores e cabouqueiros da evangelização reformada em Portugal. Não sendo biografias, também não são “crónicas”, nem “anais”, nem “décadas”, a imitar de longe os nossos clássicos da História, porque os capítulos se entrepenetram sem uma sequência cronológica de rigor; nem quisemos vincar demasiadamente a diferença de escolas e partidos, o que falsearia os factos, contrariando além disso a nossa maneira de ver e de ser.

Não há negar que história de evangelização é história dos evangelizadores, na sua acção essen­cial e característica; mas enquanto nas memórias biográficas parece ser o homem que dirige os sucessos, na história propriamente dita são os sucessos que dirigem os homens, até os mais altos. Genialmente o ilustrou Tolstoi, a respeito de Napoleão, em “A Guerra e a Paz”.

Não estamos aqui diante de heróis de Evémero. os quase-deuses, mas diante de instrumentos humildes de Deus, ainda que cooperando glorio­samente com Ele, na medida do Seu todo-sapiente Amor.

No primeiro volume, ao estudar a influência do púlpito cristão na sociedade portuguesa, de qualquer escola que fosse, e a da sociedade por­tuguesa no uso do púlpito cristão, referimos por fim, como era óbvio, os esboços de reforma que, sendo de todos os tempos, só se vão tornando orgânicos e contínuos nos tempos modernos. O estudo incidia então sobre a Igreja tradicional, perscrutando-se nele, contudo, os movimentos re­gressivos e rectificadores surgidos em qualquer época. Agora, em perspectiva diversa, estudare­mos o despontar lento e irregular da Igreja num plano reformado, cujas vicissitudes se emparelham com as da Igreja dos primeiros séculos peninsula­res, e cujas aspirações são fatalmente combatidas pela couraça das tradições criadas, aparecendo estas como fundo do quadro.

A Tradição agora aparece incidentalmente, como por incidente aparecera a Reforma no vo­lume anterior. Em suma: sob o signo da Nova Ecúmena, isto é, do mundo civilizado pelo Evan­gelho, onde Tradição e Reforma, autoridade do corpo unido e liberdade da alma redimida, são fenómenos indiscutíveis, primeiro estudámos “Tra­dição versus Reforma”, e agora “Reforma versus Tradição”, na certeza de que pode a História reunir os alvos até certo ponto adversos, num mesmo denominador comum.

Eis a razão do título geral, com que unimos os dois volumes. Quanto ao título particular da obra presente, devemos ao leitor uma explicação. Plutarco chamou “Vidas Paralelas” às suas bio­grafias de varões ilustres. Dentro do pensamento pagão estava o grande biógrafo nobremente certo. O génio pagão não poderia descobrir outra gran­deza ou excelsitude além das de vidas caminhando a par, tão excelsas, na essência, umas como outras, para a visão perspectivada da História: mais ou menos curtas, diferentes, mas todas repe­lindo gradações e neutralizando comparações.

Que são, de facto, as grandes vidas seguras em si mesmas, vividas aparentemente por si mesmas, sem a consciência dum estímulo inicial nem o amparo sentido duma Vontade transcendente e duma Palavra revelada? Vidas paralelas, que vêm duma incógnita e recolhem a outra: o nascer e o morrer. Linhas prolongadas sem verdadeiro encontro, senão no Infinito de que se não dão conta. Nem umas às outras nem a si próprias se encontram, num alvo comum.

A crença cristã, porém, nos ensinou que os nossos Maiores só são grandes em Aquele que é o centro de todos nós. A fé, que tem a sua epo­peia no capítulo undécimo da Epístola aos He­breus, onde as vidas se nos deparam e se com­param na convergência para o Cristo de Deus, ela nos leva a ver as existências guiadas pelo ideal do Evangelho convergindo para Quem no-lo trouxe e o personalizou.

Convergentes foram as vidas de aqueles que vamos recordar, para edificação e instrução nossa, ainda que alguns só convergiram para Ele na “hora undécima” da parábola, e mesmo que tal­vez algum ficou, a nossos olhos, pelo caminho (quem o sabe?) sem atingir o Centro para o qual o melhor da sua existência tendia. É assim que, descrevendo as suas vidas, não perdemos de vista o Centro e Fulcro, Aquele que, desde o ter sido levantado da terra todos vai atraindo a Si: que foi morto pelo amor que nos revelou e nos deu, e que pelo amor vive sempre.

Logo sob o título oferecemos ao leitor um grá­fico ilustrativo do nosso pensamento, onde no vale deste mundo há corações ardentes, cujas chamas convergem para Aquele que é o Alfa e o ómega: o Senhor da Igreja.

Há quase cinco anos o Dr. Xavier Lasso de la Vega, da Universidade de Madrid, chamava a atenção dos nossos investigadores para o facto incontestável da absoluta impossibilidade de um autor ler tudo quanto se haja escrito sobre uma dada matéria; e de aí inferia “a necessidade de que um grupo de documentaristas se encarregue de fazer a necessária selecção, valorizando-a e classificando-a de forma a obter-se uma rápida e acessível consulta”.

Bem certa, esta doutrina. Ela nos dá o desejo de que o presente trabalho seja, não só livro de curso, até que surja outro melhor, mas também uma base de trabalho dos alunos, como documen­taristas investigadores, que nesse interessante la­bor se habilitam à nobre tarefa da História.

Da nobreza da tarefa valerá ainda a pena falar? Se ainda, nesta altura da nossa civilização, é necessário fazê-lo, ouçamos Herculano («O Bobo», pág. 13 da 9.ª edição): “Que todos aqueles a quem o engenho e o estudo habilitam para os graves e profundos trabalhos da história se dedi­quem a ela. No meio de uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o pas­sado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio. Exercitem-no os que podem e sabem; porque não o fazer é crime”.

Da nossa parte o não o fazer tem sido, pelo menos, delito de ingratidão.

Esperávamos só parar, neste volume, a meio do actuar da geração viva. O desenvolvimento forçado de alguns capítulos obriga-nos a ficar no fim da primeira década deste século. Os restantes quarenta anos pertencerão, portanto, a um ter­ceiro volume: “A Lavra e a Palavra”, que em­preenderemos se o presente tiver aceitação e Deus nos der ensanchas e ousio.

Concluamos: tanto, afinal, nos varões ilustres como nas gentes sem nome nem eco, que a His­tória encara como massa indistinta, quase sempre as vidas paralelas são, nessa origem ignorada e também nesse destino misterioso de todos os seres — mas para aqueles que no seu íntimo acharam Deus, o Deus que os buscava, as vidas são con­vergentes para o Centro comum onde Ele se revela: o Emanuel, “Deus connosco”.

Margens do Lima, Setembro de 1957.

Eduardo MOREIRA
Vidas Convergentes. [Lisboa] : Junta Presbiteriana de Cooperação em Portugal, [imp. 1958].

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