
- 14 08 2018
- in BIBLIOGRAFIA
«Com poucas palavras antecederemos esta pequena obra, pois também é quase certo que em geral passará por elas o leitor, sem grande reparo, como é prática muito comum com os prefácios.
Deixaremos, por isso, para um capítulo integrado no texto a evocação dos “Pioneiros esquecidos”, que aliás bem merecem ser evocados.
Necessário é, contudo, que exponhamos aos espíritos sistemáticos o nosso plano, amadurecido em lições dadas durante um semestre numa cadeira de poiménica do S. T. P. de Carcavelos, após a série que constituiu um primeiro semestre e um primeiro tomo. Acresce dizer, contudo, que os outros capítulos, encimados por um nome, não são biografias exclusivas, como pareceria à primeira vista, mas quadrinhos históricos em que tivemos o propósito de fazer avultar um guia cristão, de entre os diferentes pioneiros, orientadores e cabouqueiros da evangelização reformada em Portugal. Não sendo biografias, também não são “crónicas”, nem “anais”, nem “décadas”, a imitar de longe os nossos clássicos da História, porque os capítulos se entrepenetram sem uma sequência cronológica de rigor; nem quisemos vincar demasiadamente a diferença de escolas e partidos, o que falsearia os factos, contrariando além disso a nossa maneira de ver e de ser.
Não há negar que história de evangelização é história dos evangelizadores, na sua acção essencial e característica; mas enquanto nas memórias biográficas parece ser o homem que dirige os sucessos, na história propriamente dita são os sucessos que dirigem os homens, até os mais altos. Genialmente o ilustrou Tolstoi, a respeito de Napoleão, em “A Guerra e a Paz”.
Não estamos aqui diante de heróis de Evémero. os quase-deuses, mas diante de instrumentos humildes de Deus, ainda que cooperando gloriosamente com Ele, na medida do Seu todo-sapiente Amor.
No primeiro volume, ao estudar a influência do púlpito cristão na sociedade portuguesa, de qualquer escola que fosse, e a da sociedade portuguesa no uso do púlpito cristão, referimos por fim, como era óbvio, os esboços de reforma que, sendo de todos os tempos, só se vão tornando orgânicos e contínuos nos tempos modernos. O estudo incidia então sobre a Igreja tradicional, perscrutando-se nele, contudo, os movimentos regressivos e rectificadores surgidos em qualquer época. Agora, em perspectiva diversa, estudaremos o despontar lento e irregular da Igreja num plano reformado, cujas vicissitudes se emparelham com as da Igreja dos primeiros séculos peninsulares, e cujas aspirações são fatalmente combatidas pela couraça das tradições criadas, aparecendo estas como fundo do quadro.
A Tradição agora aparece incidentalmente, como por incidente aparecera a Reforma no volume anterior. Em suma: sob o signo da Nova Ecúmena, isto é, do mundo civilizado pelo Evangelho, onde Tradição e Reforma, autoridade do corpo unido e liberdade da alma redimida, são fenómenos indiscutíveis, primeiro estudámos “Tradição versus Reforma”, e agora “Reforma versus Tradição”, na certeza de que pode a História reunir os alvos até certo ponto adversos, num mesmo denominador comum.
Eis a razão do título geral, com que unimos os dois volumes. Quanto ao título particular da obra presente, devemos ao leitor uma explicação. Plutarco chamou “Vidas Paralelas” às suas biografias de varões ilustres. Dentro do pensamento pagão estava o grande biógrafo nobremente certo. O génio pagão não poderia descobrir outra grandeza ou excelsitude além das de vidas caminhando a par, tão excelsas, na essência, umas como outras, para a visão perspectivada da História: mais ou menos curtas, diferentes, mas todas repelindo gradações e neutralizando comparações.
Que são, de facto, as grandes vidas seguras em si mesmas, vividas aparentemente por si mesmas, sem a consciência dum estímulo inicial nem o amparo sentido duma Vontade transcendente e duma Palavra revelada? Vidas paralelas, que vêm duma incógnita e recolhem a outra: o nascer e o morrer. Linhas prolongadas sem verdadeiro encontro, senão no Infinito de que se não dão conta. Nem umas às outras nem a si próprias se encontram, num alvo comum.
A crença cristã, porém, nos ensinou que os nossos Maiores só são grandes em Aquele que é o centro de todos nós. A fé, que tem a sua epopeia no capítulo undécimo da Epístola aos Hebreus, onde as vidas se nos deparam e se comparam na convergência para o Cristo de Deus, ela nos leva a ver as existências guiadas pelo ideal do Evangelho convergindo para Quem no-lo trouxe e o personalizou.
Convergentes foram as vidas de aqueles que vamos recordar, para edificação e instrução nossa, ainda que alguns só convergiram para Ele na “hora undécima” da parábola, e mesmo que talvez algum ficou, a nossos olhos, pelo caminho (quem o sabe?) sem atingir o Centro para o qual o melhor da sua existência tendia. É assim que, descrevendo as suas vidas, não perdemos de vista o Centro e Fulcro, Aquele que, desde o ter sido levantado da terra todos vai atraindo a Si: que foi morto pelo amor que nos revelou e nos deu, e que pelo amor vive sempre.
Logo sob o título oferecemos ao leitor um gráfico ilustrativo do nosso pensamento, onde no vale deste mundo há corações ardentes, cujas chamas convergem para Aquele que é o Alfa e o ómega: o Senhor da Igreja.
Há quase cinco anos o Dr. Xavier Lasso de la Vega, da Universidade de Madrid, chamava a atenção dos nossos investigadores para o facto incontestável da absoluta impossibilidade de um autor ler tudo quanto se haja escrito sobre uma dada matéria; e de aí inferia “a necessidade de que um grupo de documentaristas se encarregue de fazer a necessária selecção, valorizando-a e classificando-a de forma a obter-se uma rápida e acessível consulta”.
Bem certa, esta doutrina. Ela nos dá o desejo de que o presente trabalho seja, não só livro de curso, até que surja outro melhor, mas também uma base de trabalho dos alunos, como documentaristas investigadores, que nesse interessante labor se habilitam à nobre tarefa da História.
Da nobreza da tarefa valerá ainda a pena falar? Se ainda, nesta altura da nossa civilização, é necessário fazê-lo, ouçamos Herculano («O Bobo», pág. 13 da 9.ª edição): “Que todos aqueles a quem o engenho e o estudo habilitam para os graves e profundos trabalhos da história se dediquem a ela. No meio de uma nação decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio. Exercitem-no os que podem e sabem; porque não o fazer é crime”.
Da nossa parte o não o fazer tem sido, pelo menos, delito de ingratidão.
Esperávamos só parar, neste volume, a meio do actuar da geração viva. O desenvolvimento forçado de alguns capítulos obriga-nos a ficar no fim da primeira década deste século. Os restantes quarenta anos pertencerão, portanto, a um terceiro volume: “A Lavra e a Palavra”, que empreenderemos se o presente tiver aceitação e Deus nos der ensanchas e ousio.
Concluamos: tanto, afinal, nos varões ilustres como nas gentes sem nome nem eco, que a História encara como massa indistinta, quase sempre as vidas paralelas são, nessa origem ignorada e também nesse destino misterioso de todos os seres — mas para aqueles que no seu íntimo acharam Deus, o Deus que os buscava, as vidas são convergentes para o Centro comum onde Ele se revela: o Emanuel, “Deus connosco”.
Margens do Lima, Setembro de 1957.
Eduardo MOREIRA
Vidas Convergentes. [Lisboa] : Junta Presbiteriana de Cooperação em Portugal, [imp. 1958].