- 17 08 2018
- in «ROSTOS QUE VI, MÃOS QUE APERTEI»
Carolina Michaëlis
«Outros grandes, do pensamento e da arte de o expressar, eu conheci, mais ou menos demoradamente. A Gonçalo Sampaio, o expoente português talvez mais completo do “self made man” (prefiro escrevê-lo na língua que mais “men” terá ajudado a fazer), ouvi-o em Braga, há meio século, entusiasmado como estava pelo encontro que tivera com a polifonia tradicional do Minho. Foi isso nos dias trabalhosos do início da missão evangélica na velha cidade dos “semiprimazes” das Espanhas.
De Carolina Michaelis, a dama berlinense que foi a maior portuguesa do seu tempo, recebi gentis cartas e pude admirar, numa visita a Coimbra, quando ela aí exercia o professorado universitário, a sua nobre presença e bondoso acolhimento. Falecida no Porto onde residia, casada com o famoso e fogoso germanista vigoroso crítico de arte, Joaquim de Vasconcelos, foi o Dr. Alfredo da Silva quem dirigiu o seu funeral, como cristã evangélica, em Novembro de 1925.
Muito antes ouvira eu, em Abril de 1910, na Sociedade de Geografia, o professor da Universidade de Bordéus e huguenote ilustre Carlos de Boeck, sobre “a ideia de justiça e de pátria, no Direito internacional marítimo”. Aí, um selecto auditório, decerto como eu maravilhado com a possibilidade inesperada de tornar belo e aliciante um assunto supostamente árido, ouviu-o fazer no final da prelecção, a aplicação oportuna do texto bíblico: “a justiça eleva as nações, mas o pecado torna miráveis os povos”. Na véspera, este sábio cristão falara na União Cristã da Mocidade do Porto, actual A. C. M., sobre “Democracia e Religião”. É sua esta frase aí proferida : “Não chamo religião cristã a esta ou àquela denominação, mas à religião baseada no Evangelho”.
Encontros fugases foram esses, mas não tanto o de Henrique Brunswick, com quem convivi na União Cristã da Mocidade de Lisboa, e com quem convivo ainda, em consultas proveitosas, por meio do seu precioso sinonimário, hoje com 65 anos e muito raro, aconselhável a todos os jovens evangélicos que não queiram permanecer “analfabetos virtuais”, pela influência da “cultura de quadradinhos” e da assimilação dos livros, somente folheando-os.
Do Juiz António Emílio de Almeida Azevedo, um dos maiores jurisperitos do seu tempo, em Portugal, de quem fui secretário num pitoresco inquérito, guardo saudosa recordação pela oferta de trabalhos literários seus, entre eles “As Comunidades de Goa” (hoje de particular interesse), livro que lhe deu entrada na Academia das Ciências, apadrinhado por Oliveira Martins. Ouvi-o descrever, com sincero aplauso, em conversas íntimas, o espírito de tolerância que encontrara nos países protestantes, nomeadamente quando, como professor no “King’s College”, viveu em Londres. Dizia que, ao contrário do que sucede nos países latinos, onde se tem prestado culto a uma entidade abstracta, chamada Liberdade, e onde até os livres-pensadores permanecem católicos-romanos (assim o dizia), na Grã-Bretanha encontrou o cultivo das “liberdades”, concretas e em pluralidade (de consciência, de trabalho, de expressão, etc.). Isto me faz lembrar a afirmação de João Calvino: que a mente do homem é uma oficina que se não cansa de fabricar ídolos.
Não, irmãos e amigos, a Bíblia não é um ídolo; nem Maria, nem Paulo, nem Pedro; nem os elementos sacramentais; nem o homem nem a mulher; nem o “eu” orgulhoso ou o “eu” humilde. Vivamos em adoração do Criador revelado, Salvador presente e Amor constante; vivamos no santo iconoclasmo que essa adoração implica.»
Eduardo MOREIRA
«Rostos que vi, mãos que apertei»
Portugal Evangélico, n.º 522-525, Abril-Junho de 1964, pp. 8-9.